“Orgulho, vaidade, despeito, rancor, tudo passa, se verdadeiramente o
homem tem dentro de si um autêntico sonho de amor.” *
Leu ele, em tom romântico, enquanto
partilhava igualmente a citação na sua página do Facebook.
- Então tu não me amas autenticamente –
retorquiu ela, ocupada a arrumar a cozinha.
- O que queres dizer com isso?
- Revês-te mesmo nessa citação?
- Mas tens razão de queixa? –
questionou ele, em tom cético e quase magoado.
- Não foi isso que eu disse. Revês-te
na citação ou não?
- Mas achas que não?
- És orgulhoso que te fartas, nunca
admites que erras ou te enganas. Demoras mais tempo a arranjares-te do que eu,
adoras exibir bons carros e bons telemóveis. Ainda hoje reclamas que me esqueci
do nosso aniversário há três anos. Achas mesmo que te enquadras nessa citação?
– respondeu ela, enquanto enxugava as mãos, encostada ao lava louça.
- Pensas assim tão mal de mim? – interrogou
ele, com ar espantado.
- Não – retorquiu ela, com um sorriso,
aproximando-se dele e colocando-lhe uma mão no ombro, com carinho. – Acho que
és humano e tens defeitos, como qualquer pessoa. Por coincidência, os teus
defeitos são precisamente os descritos nessa frase. E não passaram por me
amares. Daí a minha conclusão.
Ele pegou-lhe na mão que estava sobre o
seu ombro e beijou-a. Depois, pondo-se de pé, rodeou-lhe a cintura com os
braços, num gesto terno.
- Mas isso é porque entre nós não há um
autêntico sonho de amor.
Ela arregalou os olhos, surpreendida.
- Há um autêntico amor, não um mero
sonho. Sonho é algo que vive de ilusão e fantasia. O nosso amor é real,
sincero. Já não andamos a disfarçar quem somos para parecermos melhores,
aceitamo-nos tal como somos. E isso é melhor ainda que qualquer sonho de amor,
não achas?
Ela pôs-lhe os braços à volta do
pescoço e respondeu com um beijo real e sincero.
*Miguel Torga, in “Diário (1948)”
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