30/05/2016

A Casa

A casa é sempre o centro e o sentido do mundo. A partir daí, da casa, percebe-se tudo. Tudo. O mundo todo.” *

O problema é encontrar A casa. Porque passamos toda a vida a procura dela, à procura do ponto onde tudo faz sentido, onde percebemos tudo. E vamos encontrando casas onde algumas coisas fazem sentido. Outras que são centros de algo, mas não de tudo. Outras ainda onde se vão percebendo coisas.
Mas essa, onde tudo nos é percetível, essa é a eterna miragem, aquela que perseguimos dia após dia.
Vivemos na ânsia de querer perceber tudo, quando muitas vezes não conseguimos sequer perceber-nos a nós próprios. O maior mistério da nossa vida somos nós próprios, andamos a tentar perceber o mundo sem percebermos quem somos, porque somos assim e o que nos leva a agir de determinada maneira, às vezes sempre da mesma forma apesar de querermos mudar tanta coisa e caímos sempre nos mesmos erros, nos mesmos atos, no mesmo modo de pensar.
Sim, a casa é o sentido do mundo, mas A casa não é mais que o nosso próprio coração ou alma, como quisermos interpretar. E é preciso entrarmos bem fundo dentro da nossa casa, com coragem, determinação e lanterna de mineiro para efetivamente conseguirmos ver o sentido do nosso mundo e percebe-lo todo. Porque é um exercício tão duro, tão intrinsecamente doloroso, o escavar nas nossas memórias e sentimentos, para percebermos às vezes apenas um bocadinho do nosso centro.
Mas com esforço e dedicação, sim, conseguimos perceber o sentido do nosso mundo e somos o centro dele, não de uma forma egoísta, mas porque é à nossa volta que o mundo existe e não podemos entender o mundo sem nos entendermos primeiro.


* Al Berto, in “Entrevista à revista Ler (1989)”

23/05/2016

Conselhos do Avô

Meu querido Miguel
Quando leres esta carta, já há muito não estarei neste mundo. Aliás, como decerto já ouviste centenas de vezes, foi um milagre ainda cá estar para te receber, o meu primeiro neto.
No momento em que lês esta carta, és já um homem. Vinte anos! Interrogo-me o que terás feito neste tempo. Achei que era a altura certa para te transmitir os meus parcos conhecimentos e também para me conheceres melhor.
A vida afastou-me da tua avó e esse afastamento teve, como seria inevitável, consequências na relação com as minhas filhas. Tentei ser um pai presente, mas sei que muitas vezes falhei nesse meu propósito e que as desapontei. Por isso, o meu primeiro conselho é muito especifico: se tiveres filhos, lembra-te que eles precisam sempre de ti e de saber que os amas.
Os restantes conselhos são mais genéricos e podes lê-los em imensos livros e até nas redes sociais (ainda há Facebook ao fim de vinte anos?)
Lê muito – a ler aprende-se não só factos mas também que o mundo não é só aquilo que conhecemos.
Ouve os outros - podes sempre aprender algo ou ajudar alguém que precisava desabafar.
Ri-te o mais que possas, principalmente de ti mesmo. Não te leves demasiado a sério e procura o humor em todos os momentos da vida.
Chora quando tiveres que chorar, não tenhas vergonha de o fazer. Só não chora quem não sente.
Sê a melhor versão de ti mesmo. Não te amedrontes face aos desafios, enfrenta-os com consciência das tuas forças e dos teus limites. E, acima de tudo, sê feliz!
Era assim que eu queria ter vivido a minha vida. Falhei na maioria destas coisas, espero que estes conselhos te possam ajudar a não cometer os mesmos erros que eu.
O teu avô


Miguel

16/05/2016

Desajuste

Vista do exterior, Catarina era uma mulher perfeita e bem-sucedida.
Muito bonita, com os cabelos negros sempre impecavelmente esticados, bem maquilhada, com uma figura invejável envolta em roupa de boa qualidade que lhe assentava como uma luva. Um emprego de sucesso, com um cargo já de alguma importância para a sua idade, ainda arranjava tempo para a rotina do ginásio que a mantinha em forma.
Casamento de sonho, com um homem igualmente bonito e bem-sucedido, com uma casa sempre em ordem ao dispor das vistas, férias em locais elegantes de onde regressava bronzeada e ainda mais bela.
Mas Catarina não se sentia aquela pessoa que todos viam. Quando de manhã esticava o cabelo e aplicava a maquilhagem, era porque se sentia feia e achava que os cabelos desalinhados lhe ficavam mal e que sem a maquilhagem toda a gente notaria as imperfeições da pele, os lábios mais finos do que gostaria e a quase impercetível cicatriz no nariz que ela pensava ver-se a léguas.
A roupa impecável usava-a para dar o ar de executiva que necessitava para se sentir mais apta às responsabilidades e exigências do seu trabalho, sentindo que ninguém a levaria a sério se usasse um estilo mais casual.
O bom cargo conquistara-o com muitas horas de trabalho árduo e ainda assim sentia-se constantemente uma fraude, sempre à espera que alguém lhe apontasse falhas e erros, pelo que se esforçava cada vez mais. Ninguém sonhava que, na véspera de cada reunião, a serena e sempre competente Catarina tinha que recorrer a comprimidos para conseguir dormir.
Tal como ninguém sonhava que o casamento perfeito pouco mais era que um juntar de interesses, que o marido quase não lhe dava atenção ao chegar a casa, concentrando-se mais no computador e no futebol, mas esperava que ela estivesse sempre disponível e para os jantares com os clientes estrangeiros. E que constantemente era bombardeada pela sogra (e pela própria mãe) com a eterna pergunta sobre quando é que vinham os netinhos, quando Catarina não se sentia sequer capaz de tomar conta de si própria na maioria dos dias.

Quem a via de fora, pensava: Ali vai uma linda mulher, feliz e bem-sucedida. Mas o patamar de exigência consigo própria de Catarina era muito elevado e sentia-se feia, infeliz e um fracasso em muitas partes da sua vida. 

09/05/2016

A vida em Technicolor

Vivo numa cidade bela, com um rio maravilhoso em que o céu azul se reflete e com escarpas de pedra cinzenta, agora na primavera pontilhadas de plantas verdes e flores coloridas. Mas quando se vive no centro, por entre casas degradadas e na rotina do “casa-trabalho/trabalho-casa”, é fácil esquecê-lo. Foi preciso um desafio para, num dia cansativo e aborrecido, reparar que ao cimo da rua ingreme que constitui o meu percurso diário a caminho de casa, há uma casa antiga em azulejo cor de laranja. Quem me conhece, sabe que é cor que abomino, mas naquele dia, naquele momento, aquela casa parecia-me um destino a alcançar, brilhante e colorida, animando o cinzento do dia e, estranhamente, o cinzento que tinha nesse dia cá dentro.
Porque, nesse dia, a minha cor interior condizia com o tempo. Mas neste período notei também que, embora um céu azul anime e um dia cinzento deprima, são apenas fatores colaterais na disposição geral. Ainda que uma manhã solarenga predisponha ao bom humor, e que um dia chuvoso faça apetecer voltar logo para a cama, a companhia certa faz também muita diferença.
Observei o azul profundo do céu limpo, quando já anoiteceu e já se vêm estrelas, um azul sereno que inspira sonhos e fantasias e que, pela sua beleza, lembra um manto de príncipe, transmitindo paz e confiança no amanhecer do dia seguinte.
Apreciei umas pequenas árvores, quase escondidas numa pequena praceta, ainda sem folhas, mas cheias de flores rosa pálido, tão discretas que quase passavam despercebidas, e também as árvores bem verdes de um jardim perto de casa, que me fez pensar porque não o aproveito mais vezes, na correria do dia a dia, já que tenho ali um ponto onde parar um pouco com serenidade. Mas serenidade obtenho também quando acaricio o pelo preto sedoso do meu gato mais mimalho, aquele que de tanta turrinha me faz entornar o chá por cima de mim e que tenta roer a caneta com que escrevo.
Concentrei-me também na beleza das diferentes cores de olhos. Os olhos das pessoas fascinam-me, aquelas janelinhas para a alma, diz o povo, mas para mim normalmente inescrutáveis. Todos os olhos são belos, quando nos olham com franqueza e amizade. Sejam olhos castanhos quase negros, cor de avelã, azuis brilhantes ou verdes claros, ou aqueles em que os laivos de verde numa base castanha nos deixam sem saber com que cor os classificar. Mas, seja qual for a cor, quando podemos olhar alguém nos olhos e não sentir nenhum tipo de desconforto, sabemos que temos ali um amigo.
Não podia concluir a minha incursão pela cor sem olhar para mim própria. Sem reparar que só uso apenas cores neutras quando estou aborrecida (ou com excesso de roupa por lavar), porque o meu habitual é usar cores vivas. E que, por essa minha paixão pela cor, ao entrar na minha loja de tricot favorita (http://loja.ovelha-negra.com/pt/), todos aqueles novelinhos coloridos me fazem sentir como uma criança numa loja de gomas, a desejar comprar tudo o que vejo. Porque a cor é de facto um aspeto que conta muito para mim e que afeta muito os meus estados de espírito. E precisei deste desafio para o notar.


O primeiro curso em que me inscrevi no Skillshare foi “Creative-Writing-for-All-A-10-Day-Journaling-Challenge”(https://www.skillshare.com/classes/writing/Creative-Writing-for-All-A-10-Day-Journaling-Challenge/1042474131?via=user-profile), em que o desafio é escrever pequenos textos ao longo de 10 dias começando por “hoje notei”. Depois duma tentativa falhada de cumprir com os 10 dias de escrita, percebi que, naqueles em que efetivamente tinha cumprido, dois temas saltavam à vista: assuntos muito pessoais e cor. Assim, decidi retomar o desafio centrando-me na cor. Este texto é baseado nesses pequenos apontamentos e é o primeiro de não ficção neste blogue.

02/05/2016

Adeus!

Adeus, meu amor (sim, porque apesar de tudo continuas a ser o meu amor).

Sinto, porém, que está na hora de ir e de parar com a batalha inglória que é tentar que me ames de volta.
Sim, eu sei que até o dizes, uma e outra vez, mas são meras palavras, sinto bem que no fundo não sou mais do que um hábito, um conforto, uma mãezinha até.
Não, chega disso. Já tentei conquistar o teu amor (o real, não esse que debitas como um papagaio sem o sentir) por todas as formas, mas ou és incapaz de o sentir, ou não sou a pessoa certa para ti.
Estou cansada de vir sempre em último para ti, depois do trabalho, dos amigos, do futebol. Nunca, nunca me puseste, por um instante que fosse, à frente dos teus próprios interesses.
Enquanto eu (parva, eu sei), sempre te pus à frente de tudo, inclusive de mim própria. Talvez tenha sido esse o meu erro, talvez me tenha anulado na ânsia de te agradar e conquistar, mas nunca fui bem-sucedida.
Por isso, venho dizer-te: Basta! Não vou mais lutar para te conquistar, não vou mais viver em função dos teus desejos.
Se achares que não podes viver sem mim, pensa melhor e repara bem se não podes suprir essa falta com uma empregada doméstica, os teus amigos e o malfadado futebol.
Dei-te demasiado tempo da minha vida, achando que acabaria por conseguir o teu amor verdadeiro, finalmente percebo que não e que é altura de me afastar, para sempre.
Não me procures, deixa-me sofrer e ultrapassar isto em paz. Dá-me espaço para redescobrir quem sou.

A (por enquanto) tua

                        Mariana