14/11/2016

O carrossel

A vida é um carrossel, que gira e gira, e tem os bonecos que sobem e descem ao som da música. Quando entrei no carrossel, ambicionava um lugar numa das chaveninhas floridas, ou no unicórnio cor de rosa, ou até mesmo numa girafa.
Mas neste carrossel não se pode escolher o lugar e o que me calhou foi um burrinho desconjuntado, já sem uma orelha, que nem subia nem descia, mas abanava por todos os lados, tornando a viagem desconfortável e assustadora. Tão instável que volta e meia caía do burrinho e tinha que andar aos tombos pelo meio do carrossel, à procura de um lugar, mas o único que encontrava era sempre o burrinho, para o qual tinha cada vez mais medo de subir, porque sabia que por mais que me agarrasse, mais cedo ou mais tarde ele ia voltar a atirar-me ao chão.
Numa volta mais rápida, fui projetada para fora do carrossel. Não sei como aconteceu, só sei que de repente estava no chão, fora do carrossel, tentando desesperadamente recuperar o folego. Quando consegui pôr-me de pé, fiquei parada a ver o carrossel girar. Girava tão rápido que só de olhar me punha tonta, quanto mais conseguir saltar de novo lá para dentro. Além disso, não via nenhum lugar para mim, nem sequer o burrinho desconjuntado. Toda a gente parecia divertir-se no carrossel, mas eu nunca me divertira, com tanta queda do burrinho! Então, sentei-me do lado de fora, a ver o carrossel girar e a tentar decidir o quanto queria voltar lá para dentro e como o iria fazer. E o tempo foi passando e o carrossel continuava a girar, indiferente à minha ausência. Ninguém parava o carrossel para eu voltar a entrar, pelo que percebi que teria que ganhar coragem e saltar lá para dentro. Ainda estou à espera dela. 

31/10/2016

A casa em ruínas

Era uma casa bonita, com tudo para ser o lar perfeito. Mas pouco depois da construção começaram a aparecer os problemas. Primeiro, umas rachadelas na parede, encobertas com uma pintura. Que depois voltaram a abrir e alargar até fazer buracos.
Então começaram-se a disfarçar os buracos. Primeiro puseram-se uns móveis à frente a encobrir. Depois, taparam-se alguns toscamente com cimento mal feito, que volta e meia se esboroava também e sobre o qual era aplicado mais um pedaço de cimento, só para mascarar.
Há até, numa parte mais escondida do fundo da casa, um buraco que atravessa a parede e que é tapado apenas com pedaços de cartão, o que faz com que a casa esteja sempre fria.
Os buracos são já tantos que a casa ameaça até ruir. Se passa um camião na rua, ou até apenas uma carrinha mais pesada, toda ela estremece.
Mas a fachada… A fachada é maravilhosa, bem pintada de azul celeste, com a porta e as janelas sempre brilhantes e com um ar acolhedor. Quem a vê, pensa que é uma casa maravilhosa e que quem lá mora tem muita sorte, mas nem sonha que os moradores às vezes nem dormem de noite, com medo que a casa se desmorone.

03/10/2016

A esperança

“Toda a infelicidade dos homens provém da esperança.” *

Esperamos por amor e ele desilude-nos. Esperamos por amizade e somos atraiçoados. Esperamos por sabedoria e somos confrontados com a imensidão da nossa ignorância. Esperamos por paz e harmonia e só vemos guerra, conflitos e discussões. Esperamos por beleza e só vemos a sua ausência. Esperamos por sucesso e bens materiais, para vermos que mesmo alcança-los não traz felicidade. Esperamos pelo sol e só vemos as nuvens. Esperamos que os nossos entes queridos durem para sempre e eles vão-se tantas vezes antes de nós. Esperamos alcançar a felicidade e, por qualquer motivo que não conseguimos perceber, ela está sempre um passinho à frente de nós.
A esperança cria em nós determinadas expetativas que frequentemente não são cumpridas, ou nos chegam de forma diferente daquela que esperávamos e temos dificuldade em compreender que não recebemos aquilo que esperávamos, mas aquilo que na realidade precisávamos, sem que sequer o soubéssemos. Essas expetativas goradas são efetivamente a fonte de infelicidade dos homens, porque falham em trazer a felicidade que esperávamos e deixam-nos com a sensação de falhar, de não atingir algo que achamos que nos devia ser possível atingir, de perder aquilo que mais queríamos guardar.
E, porém, trazendo-nos tanta infelicidade, o que seria dos homens sem esperança? Sem o sonho que comanda a vida? Sem aspirarmos àquela paixão, àquele trabalho, àquelas férias paradisíacas? E ainda que a realidade se venha a revelar o inverso de tudo o que esperámos e nos traga a infelicidade, o esperar por algo doce, algo que nos fará sentir bem connosco próprios, é por si só uma forma de felicidade. E é preferível ser feliz por uns tempos com uma ilusão e depois ficar infeliz, do que não ter esperança em nada e sê-lo perpetuamente.

* Albert Camus 

26/09/2016

O fundo do poço

Sabes que bateste no fundo do poço quando olhas à tua volta e só vês escuridão, não vislumbras nenhuma solução para os teus problemas, nenhum caminho a seguir para encontrares o teu futuro.
O fundo do poço é frio, escuro e solitário, no entanto por vezes pode ser “confortável” e desejares ficar lá. Uso as aspas porque não pode haver real conforto num sítio assim, mas é o conforto de pensar que, se já estás no fundo, nada mais te poderá afetar. O problema é que, além de essa não ser uma forma de vida, na realidade ainda podem acontecer muitas coisas desagradáveis, como deitarem lixo para o poço ou resolverem tapa-lo, soterrando-te nele para sempre.
Por isso, há que tentar sair do poço. O primeiro passo é recuperar da queda. Respirar, avaliar as consequências da queda e quais as possibilidades de saída.
Alguns poços, ainda que à primeira vista sejam aterradores e pareçam não ter fundo, são na realidade pouco profundos ou, mesmo sendo-o, têm uma escada de segurança que podes, com cuidado e tendo em conta eventuais ferimentos, subir por ti próprio, ao teu ritmo, mas com segurança e relativamente pouco esforço.
Outros têm uma corda que terás que trepar ou saliências na parede por onde escalar. É mais custoso, mais perigoso, mais sujeito a retrocessos, mas eventualmente é possível sair por meios próprios.
Mas se o poço não tem meios que facilitem a saída ou se estás demasiado ferido ou sem forças para sair do poço, ainda que te pareça que o devias fazer sozinho, não deves hesitar em gritar por socorro. Chama, grita até ficares rouco, mas não te deixes ficar no poço por achares que ninguém te virá socorrer. Sejam os teus amigos, que até já andavam desesperados à tua procura, sejam profissionais, se chamares irão aparecer e ajudar-te a sair do poço e a tratar das feridas.
Não te deixes ficar no fundo do poço por medo que não te ouçam ou que te achem pateta por teres caído. Luta e pede ajuda sempre que lutar sozinho não for suficiente!

19/09/2016

Feitiço

No meu mundo, fazes o sol brilhar e as estrelas cintilar. Fazes o sereno céu noturno e o luar prateado. Dás o azul ao céu e o verde às árvores, fazes os passarinhos cantar e os arbustos florescer.
Trazes contigo o calor suave da Primavera, o aroma das rosas e da brisa do mar. A doçura do chocolate e o sabor dos melhores petiscos. As baladas de amor e o rock da pesada. O nascer do sol na montanha e o pôr do sol sobre o rio. O riso, as conversas animadas, o canto e as lágrimas de alegria.
Trazes nos olhos a minha felicidade e nos lábios o meu sorriso.
Mas, sem ti, o meu mundo é triste e sombrio. Sem ti está sempre tempo encoberto e frio e chuva. O sol e a lua escondem-se atrás das nuvens e recusam-se a alumiar-me.
Sem ti não vejo o caminho, vejo uma floresta cerrada onde sei que ficarei perdida para todo o sempre, tentando em vão encontrar a saída. Onde só há animais ferozes que me aterrorizam e dos quais tenho que fugir ou esconder-me. Onde não há comida, só fruta amarga e muitas vezes venenosa.
Como foi que, sem fazeres nada, viraste assim o mundo do avesso? Serás um mago e estarei sob o teu feitiço? Ou serei eu a feiticeira que acidentalmente se amaldiçoou a si própria?

12/09/2016

Teoria dos afetos

Os afetos são algo de complexo. Não só como os sentimos, por quem os sentimos, mas também como os outros sentem o nosso afeto.
Às vezes, os afetos mais profundos estão escondidos sob carapaças de aparente indiferença ou frieza, seja por questões de temperamento, seja por medo de nos expormos ao revelar esse afeto.
E, por estar assim disfarçado, parece às vezes nem existir, revelando-se, apenas aos olhares mais atentos, nas atitudes de quem o sente.
Quantas vezes só sentimos o afeto de alguém quando este se revela num momento de necessidade?
E quantas vezes só o demonstramos também quando vemos que aquela pessoa precisa de nós, do nosso apoio, do nosso carinho e esquecemos então o medo e a vergonha e estamos lá, para o que der e vier!
Precisamos também das palavras para sentirmos o afeto, mas não são só as palavras que demonstram o afeto, mas também as atitudes. O apoio incondicional, a presença quando mais faz falta, o conselho precioso no momento necessário.
Não, os afetos não são algo simples, porque os sentimentos nunca o são.

05/09/2016

O Pintor

Quantas tonalidades de azul tem o céu? Ou um pôr do sol junto ao mar?
Cores que diríamos irreproduzíveis, se não as víssemos sair da paleta de Artur para os seus magníficos quadros.
Olhando para ele, ninguém diria que havia ali um excelente artista. De segunda a sexta, das nove às seis, Artur anotava encomendas, emitia faturas, registava documentos, era um pacífico e competente empregado de escritório.
Nas horas livres, transformava-se no pintor, que colocava no papel misturas de cores que reproduziam de forma quase fotográfica as paisagens que via.
Numas férias, Artur ia diariamente pintar para a Foz. O mar era o seu tema favorito. Reparou, porém, numa presença constante na esplanada próxima, uma mulher, morena, de ar sereno, que sempre exibia um sorriso gentil aos empregados de café. Já não era nenhuma menininha, mas assumia-o de forma natural no seu porte e forma de vestir.
Impulsivamente, Artur começou um novo quadro, reproduzindo lentamente, ao longo de vários dias, aquela figura tão bela.
Um dia, sentiu que alguém parou atrás de si a observar. Era comum, mas se a pessoa não metesse conversa, Artur fingia não notar.
Logo de seguida, apercebeu-se que uma amiga se aproximava da sua musa, falando excitadamente. Viu a mulher, sempre tão serena, corar profundamente e olhar para ele com ar espantado.
Apercebeu-se nesse momento de que o que fizera podia ser considerado abusivo, pelo que retirou a folha do seu caderno e dirigiu-se à esplanada. Estendeu-a à modelo inesperada, dizendo:
- Peço desculpa, não a devia ter pintado sem lhe pedir autorização. Foi um abuso da minha parte.
A mulher olhou para a pintura e devolveu-lha:
- Não assinou a sua obra.
Artur fê-lo rapidamente, voltando a entrega-la.
- Muito prazer, Artur – disse ela, estendendo-lhe a mão. – O meu nome é Clara e esta é a minha amiga Joana. Já tinha visto as suas pinturas do mar e do pôr do sol, fiquei sempre impressionada. Por favor, sente-se e tome qualquer coisa connosco.
Corando ligeiramente, Artur concordou e sentou-se.